4 de set. de 2013

Espaços






A partir de algumas viagens de lazer de carro pelo Uruguai e Argentina, há alguns anos me intriga diferenças nos espaços urbanos de habitação entre aqueles vizinhos e o Brasil: porque sendo tão vasto o nosso país suas terras e terrenos são tão 'apertados' ?

A quantidade de classificações de 'posse' e o número de Escrituras definitivas restrito apenas aos empreendimentos das últimas décadas me parece revelar alguma doença 'patrimonialistica' do Brasil, talvez mesmo herdada de Portugal (sabe-se que a Espanha dava instruções aos administradores de suas colônias de como as cidades deviam ser feitas, ao contrário de Portugal, que 'deixava solto').

Porque mesmo no diminuto Uruguai as casas se centram nos terrenos com amplas áreas livres à volta, enquanto nós vivemos apertados em espaços de terrenos pequenos ? Tempos atrás um primo de Porto Alegre mostrou-me sua casa em construção num condomínio de classe 'A'. Pois o recuo nas habitações não devia passar de qualquer metro e meio !

O visual caótico e estúpido agrava-se com outro enigma - porque nos nossos vizinhos se nota claramente o hábito de utilizarem projetos arquitetônicos no que constroem para viver, enquanto no Brasil não existe o hábito, os donos "projetam" eles mesmos as construções horríveis para viver com os seus ?

Assim, achei interessante o artigo reproduzido abaixo em 03.09.2013 no Jornal do Brasil - o autor, com sua vivência de Defensor Público, conta-nos de outras consequências importantes, decorrentes do atraso habitacional no nosso país:



Os puxadinhos na Lei Maria da Penha

Carlos Eduardo Rios do Amaral*

Muita gente imagina que as maiores causas disparadas da violência doméstica e familiar sejam a questão das drogas e do álcool, considerando distantes todos os outros possíveis fatores deflagradores dessa modalidade específica de violência. A grande verdade é que a questão dos puxadinhos, aqueles aglomerados de residências de uma mesma família, que vão se formando num mesmo lote, a partir da antiga casa do ancestral da família, toma conta de boa parte dos processos dos juizados de violência doméstica no país.

A própria Lei Maria da Penha, de alguma forma, faz referência a essa situação possessória: “Artigo 5º (...) I - No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas”. E a animosidade em muitos desses sítios familiares é recorrente. Não é difícil verificar o uso de foices, enxadas e facões nessas discussões familiares. Claro, cada um tomando parte de seu parente mais próximo em detrimento do outro, mas às vezes existe certa confusão na hora de tomar partido da briga ou discussão.

Claro que esse não é um problema pelo menos inicialmente jurídico mas, sim, social. Está intimamente entrelaçado à questão da habitação no Brasil, à dificuldade da aquisição da casa própria. Tanto na zona urbana como na zona rural. É fenômeno que atinge diretamente as classes mais pobres do país. Cada ser tem a sua subjetividade. Um gosta de café com açúcar, o outro sem açúcar; um gosta de ouvir louvores religiosos, o outro gosta de montar uma verdadeira roda de pagode na sua sala; um é flamenguista apaixonado, com direitos a fogos e tudo mais, o outro detesta futebol; um adora animais e cria meia dúzia deles, o outro prefere viver longe de bichos; e por aí vai. É claro que em menos de seis meses esse local se transformará, naturalmente, em uma Faixa de Gaza. É uma bomba relógio prestes a explodir.

Não se trata de relacionar essas pessoas à bandidagem ou à criminalidade. Pelo contrário, a sua maioria esmagadora é formada de gente honesta e trabalhadora, pessoas queridas e conhecidas na comunidade. Mas, mesmo assim, o dia a dia ao lado de dezenas de convidados, agregados, parentes e familiares, misturando-se à individualidade de cada um, tem o poder de transformar qualquer local em lugar insuportável, recheado de intolerâncias e episódios de contendas familiares.

Muitos desses casos acabam indo parar no Juizado de Violência Doméstica, camuflados de violência de gênero. Quando se sabe que o pano de fundo da discussão é a insuportabilidade da vida em comum entre esses posseiros consanguíneos e afins, moradores do mesmo terreno. Do vaso de planta quebrado, passando pelo barulho do portão, até o padrão de água e energia elétrica, tudo deságua no Juizado de Violência Doméstica.

De algum modo, os juizados de violência doméstica acabam debelando a ocorrência de homicídios e outros tipos de violência nesses ambientes familiares, salvando pessoas. Tornando a Justiça presente e sentida pelos envolvidos nesses complexos imbróglios familiares. Mas a própria aplicabilidade das medidas protetivas de urgência se faz difícil nesses locais. Não ter contato, não se aproximar ou deixar de frequentar os mesmos lugares nessa situação de enlace habitacional é coisa muitas vezes problemática. O afastamento do lar fica juridicamente impraticável porque cada um considera seu cômodo ou espaço isoladamente como lar – o que de fato é.

Os casos de reincidência nesses puxadinhos são frequentes. Praticamente, muitas dessas famílias passam décadas ou mesmo o resto da vida em delegacias e fóruns. Quase todos possuem processos criminais uns contra os outros. Se um descobrir que o outro registrou nova queixa, seu adversário corre também para a delegacia vizinha, Defensoria Pública ou Ministério Público, para fazer a sua reclamação contra o parente.

O que se observa nitidamente é que o poder público não pode ficar inerte ou indiferente à questão desses puxadinhos inflamados pela violência, doméstica ou não. Deve-se conceber que o problema da habitação no Brasil e as dificuldades na aquisição da casa própria também são fatores de fomento da violência. E, assim, devem ser criadas políticas públicas para assegurar que cada família brasileira tenha um padrão social aceitável de moradia.

Carrear sempre para o Poder Judiciário a contenção dos episódios de violência nesses puxadinhos é apenas um paliativo para o problema, sempre acompanhado da eternização dessas contendas familiares. É o Poder Executivo, principalmente a nível municipal, que possui o dever de promover essas transformações sociais locais, inclusive começando pela educação de crianças e jovens nas escolas, discutindo a respeito desse aflitivo problema social, ligado ao planejamento familiar.

* Carlos Eduardo Rios do Amaral é defensor público no estado do Espírito Santo.