A
partir de algumas viagens de lazer de carro pelo Uruguai e Argentina,
há alguns anos me intriga diferenças nos espaços urbanos de
habitação entre aqueles vizinhos e o Brasil: porque sendo tão
vasto o nosso país suas terras e terrenos são tão 'apertados' ?
A
quantidade de classificações de 'posse' e o número de Escrituras
definitivas restrito apenas aos empreendimentos das últimas décadas
me parece revelar alguma doença 'patrimonialistica' do Brasil,
talvez mesmo herdada de Portugal (sabe-se que a Espanha dava
instruções aos administradores de suas colônias de como as cidades
deviam ser feitas, ao contrário de Portugal, que 'deixava solto').
Porque
mesmo no diminuto Uruguai as casas se centram nos terrenos com amplas
áreas livres à volta, enquanto nós vivemos apertados em espaços
de terrenos pequenos ? Tempos atrás um primo de Porto Alegre
mostrou-me sua casa em construção num condomínio de classe 'A'.
Pois o recuo nas habitações não devia passar de qualquer metro e
meio !
O
visual caótico e estúpido agrava-se com outro enigma - porque nos
nossos vizinhos se nota claramente o hábito de utilizarem projetos
arquitetônicos no que constroem para viver, enquanto no Brasil não
existe o hábito, os donos "projetam" eles mesmos as
construções horríveis para viver com os seus ?
Assim,
achei interessante o artigo reproduzido abaixo em 03.09.2013 no
Jornal do Brasil - o autor, com sua vivência de Defensor Público,
conta-nos de outras consequências importantes, decorrentes do atraso
habitacional no nosso país:
Carlos Eduardo Rios do Amaral*
Muita gente imagina que
as maiores causas disparadas da violência doméstica e familiar
sejam a questão das drogas e do álcool, considerando distantes
todos os outros possíveis fatores deflagradores dessa modalidade
específica de violência. A grande verdade é que a questão dos
puxadinhos, aqueles aglomerados de residências de uma mesma família,
que vão se formando num mesmo lote, a partir da antiga casa do
ancestral da família, toma conta de boa parte dos processos dos
juizados de violência doméstica no país.
A própria Lei Maria da
Penha, de alguma forma, faz referência a essa situação
possessória: “Artigo 5º (...) I - No âmbito da unidade
doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas”. E a animosidade em muitos desses sítios familiares é
recorrente. Não é difícil verificar o uso de foices, enxadas e
facões nessas discussões familiares. Claro, cada um tomando parte
de seu parente mais próximo em detrimento do outro, mas às vezes
existe certa confusão na hora de tomar partido da briga ou
discussão.
Claro que esse não é um
problema pelo menos inicialmente jurídico mas, sim, social. Está
intimamente entrelaçado à questão da habitação no Brasil, à
dificuldade da aquisição da casa própria. Tanto na zona urbana
como na zona rural. É fenômeno que atinge diretamente as classes
mais pobres do país. Cada ser tem a sua subjetividade. Um gosta de
café com açúcar, o outro sem açúcar; um gosta de ouvir louvores
religiosos, o outro gosta de montar uma verdadeira roda de pagode na
sua sala; um é flamenguista apaixonado, com direitos a fogos e tudo
mais, o outro detesta futebol; um adora animais e cria meia dúzia
deles, o outro prefere viver longe de bichos; e por aí vai. É claro
que em menos de seis meses esse local se transformará, naturalmente,
em uma Faixa de Gaza. É uma bomba relógio prestes a explodir.
Não se trata de
relacionar essas pessoas à bandidagem ou à criminalidade. Pelo
contrário, a sua maioria esmagadora é formada de gente honesta e
trabalhadora, pessoas queridas e conhecidas na comunidade. Mas, mesmo
assim, o dia a dia ao lado de dezenas de convidados, agregados,
parentes e familiares, misturando-se à individualidade de cada um,
tem o poder de transformar qualquer local em lugar insuportável,
recheado de intolerâncias e episódios de contendas familiares.
Muitos desses casos
acabam indo parar no Juizado de Violência Doméstica, camuflados de
violência de gênero. Quando se sabe que o pano de fundo da
discussão é a insuportabilidade da vida em comum entre esses
posseiros consanguíneos e afins, moradores do mesmo terreno. Do vaso
de planta quebrado, passando pelo barulho do portão, até o padrão
de água e energia elétrica, tudo deságua no Juizado de Violência
Doméstica.
De algum modo, os
juizados de violência doméstica acabam debelando a ocorrência de
homicídios e outros tipos de violência nesses ambientes familiares,
salvando pessoas. Tornando a Justiça presente e sentida pelos
envolvidos nesses complexos imbróglios familiares. Mas a própria
aplicabilidade das medidas protetivas de urgência se faz difícil
nesses locais. Não ter contato, não se aproximar ou deixar de
frequentar os mesmos lugares nessa situação de enlace habitacional
é coisa muitas vezes problemática. O afastamento do lar fica
juridicamente impraticável porque cada um considera seu cômodo ou
espaço isoladamente como lar – o que de fato é.
Os casos de reincidência
nesses puxadinhos são frequentes. Praticamente, muitas dessas
famílias passam décadas ou mesmo o resto da vida em delegacias e
fóruns. Quase todos possuem processos criminais uns contra os
outros. Se um descobrir que o outro registrou nova queixa, seu
adversário corre também para a delegacia vizinha, Defensoria
Pública ou Ministério Público, para fazer a sua reclamação
contra o parente.
O que se observa
nitidamente é que o poder público não pode ficar inerte ou
indiferente à questão desses puxadinhos inflamados pela violência,
doméstica ou não. Deve-se conceber que o problema da habitação no
Brasil e as dificuldades na aquisição da casa própria também são
fatores de fomento da violência. E, assim, devem ser criadas
políticas públicas para assegurar que cada família brasileira
tenha um padrão social aceitável de moradia.
Carrear sempre para o
Poder Judiciário a contenção dos episódios de violência nesses
puxadinhos é apenas um paliativo para o problema, sempre acompanhado
da eternização dessas contendas familiares. É o Poder Executivo,
principalmente a nível municipal, que possui o dever de promover
essas transformações sociais locais, inclusive começando pela
educação de crianças e jovens nas escolas, discutindo a respeito
desse aflitivo problema social, ligado ao planejamento familiar.
* Carlos Eduardo Rios do Amaral é defensor público
no estado do Espírito Santo.